Sunday, March 9, 2008

Dealey Plaza pela mira telescópica de uma Mannlicher-Carcano



Envolta numa bruma de mistério, a morte do presidente norte-americano John Kennedy tornou-se um dos momentos mais importantes da década de 1960 e da história contemporânea. Enquanto visitava a cidade de Dallas, no dia 22 de Novembro de 63, o jovem presidente foi assassinado em público, alegadamente por um atirador solitário chamado Lee Harvey Oswald. Após o assassinato, a imprensa dos Estados Unidos divulgou a sua foto e o seu perfil completo, descrevendo-o como um homem mentalmente perturbado, de ideais Marxistas e filiado a grupos Pro-Castro. Antes de poder testemunhar em tribunal, Oswald foi por morto por um tiro à queima roupa em frente a dezenas de polícias, pelas mãos do mafioso Jack Ruby. A Comissão chefiada por Earl Warren mais tarde reforçou a teoria do lone gunman, refutada e debatida incessantemente desde então.

Não querendo mergulhar muito profundamente naquela que é uma das mais brilhantes argumentações do nosso século, é natural referir que já foram apresentadas imensas evidências de que a teoria estabelecida no Relatório Warren é uma farsa, resultado de uma conspiração alastrada por vários membros do governo ou, menos credível, de uma investigação mal direccionada. Jim Garrison, District Attourney da paróquia de Nova Orleães, investigou o caso durante anos tendo entrevistado quase todas as testemunhas e pessoas implicadas antes de ver a sua reputação convenientemente manchada pelos mass media pouco antes de levar a tribunal a acusação contra Clay Shaw, raia miúda num caso que alegadamente envolvia o vice-presidente Lyndon Johnson e as altas patentes do departamento militar.

Reconstruindo a realidade daquele infame dia solarengo no Dealey Plaza, a companhia independente Traffic Games, sediada na Escócia, levou a cabo o trabalho controverso de recriar numa matriz virtual interactiva todo o espaço da rua de Dallas assim como os elementos humanos e mecânicos que protagonizaram a cena do assassinato. Colocando o jogador no papel de Oswald, precisamente na janela do sexto andar do book depository, o jogo apenas permite controlar a direcção de disparo da arma munida com uma mira telescópica e o seu gatilho. Do fundo da rua surge a escolta presidencial que desfila JFK, desprotegido e em vagaroso passo de marcha fúnebre qual cordeiro sacrificial.

"Back, and to the left..." - um pormenor sórdido mas rigoroso da bala que atinge o crânio

Se a versão oficial nos propõe o disparo de três balas, uma as quais a egrégia bala mágica (segundo a teoria exasperada de Arlen Specter que terá produzido várias feridas não fatais no Governador Connally e no Presidente Kennedy), em JFK RELOADED temos a possibilidade de produzir um decurso alternativo da história - incluindo a resignação do atirador. Todo o jogo (?) se sucede numa questão de segundos, cingindo-se tão apenas à duração da passagem do desfile presidencial desde a viragem na rua Houston para a Elm até atingir a cobertura da tripla passagem. É possível dizer que JFK RELOADED consta entre as experiências videolúdicas mais breves de que há memória, porém tão rica e compensadora que trespassa em absoluto o rótulo de minigame.

A versão oficial do relatório de investigação encabeçada pelo Juiz Earl Warren apoiou a teoria do atirador solitário ou "lone gunman".

Neste título que insinua uma visão alternativa, toda uma sandbox (opcionalmente) caótica que potencializa os mais variados resultados no seu próprio entorno, também se permite alcançar grande precisão histórica já que o motor de física compreende a anatomia dos alvos, velocidades de disparo, intervalos temporais e resistência de alguns materiais. Desta forma, é possível ensaiar três disparos muito semelhantes aos que o relatório Warren oficializou como tendo sido originados na arma empunhada pelo ex-militar Oswald. Todavia, a sua imensa improbabilidade sugere ao jogador mais informado o absoluto ridículo das conclusões da comissão de investigação, que baseou toda a sua compilação de dados e factos numa teoria laboratorial de que uma só bala restou, quase intacta, após ter estilhaçado vários ossos e ricocheteado no metal da viatura.

Humor negro: uma das perspectivas de replay produz um enquadramento idêntico ao do célebre filme de Abraham Zapruder

Existe algo de verdadeiramente cruel em JFK RELOADED e, em simultâneo, de fascinante. O nível de detalhe na representação da balística, do local e da escolta presidencial demonstra que esta criação ultrapassa o mero exercício banal, atingindo o estatuto de pequena obra-prima, um jogo de culto para seguidores dos desenvolvimentos tecnológicos e, por conseguinte, de toda a conspiração que circula a morte de JFK. Volvidos mais do que quarenta anos, ainda é possível que estejamos a sofrer as consequências políticas da sua morte e muitos dos seus familiares e amigos pessoais ainda devem recordá-la com pesar e agonia. Contudo convém referir que as representações virtuais dos intervenientes não representam de forma alguma a sua dimensão pessoal e privada, mas antes a sua persona como figuras públicas que se expõe ao escrutínio generalizado. A sua recriação em JFK RELOADED, longe de ser a de uma simulação, pertence ao domínio de um exercício semi-humorístico simultaneamente cruel e apetecível.

Não há como negar que este é um prazer culpado: sinteticamente, o irmão de John Kennedy proferiu a sua opinião sobre o jogo classificando-o como desprezível, reacção legítima e consonante. O site oficial do jogo mantém-se neste momento como uma silenciosa lápide de um projecto abolido e redondamente incompreendido, cujo epitáfio assinala um lugar onde também se fez história em 22 de Novembro de 2004 - exactamente 41 anos depois da tragédia em Dallas. Algumas investidas humorísticas são demasiado excessivas para a sociedade e este jogo representa, certamente, uma das mais flagrantes. JFK RELOADED coloca o dedo na ferida, razão pela qual teve um sucesso tão limitado e um final tão prematuro. No entanto permanecerá durante muitos anos, por via da sua excelência e engenho, como um momento alto de uma longa história de conflitos entre moralidade social e os arrojados conteúdos dos novos média.

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